As 10 maiores mentiras sobre vacinas que viralizam no Telegram — e o que a ciência já sabe sobre cada uma
17/10/2025
(Foto: Reprodução) SUS amplia faixa etária da vacina contra HPV para jovens de até 19 anos
O Brasil concentra 40% de toda a desinformação antivacina da América Latina e Caribe, segundo levantamento inédito obtido com exclusividade pelo g1.
Conduzido pelo Laboratório DesinfoPop da Fundação Getulio Vargas (FGV), o estudo mapeou 1,47 milhão de mensagens publicadas entre 2019 e 2025 em 1.785 comunidades conspiratórias do Telegram, que reúnem mais de 5,8 milhões de usuários ativos.
Em meio a esse universo de mensagens, os pesquisadores identificaram 175 supostos “danos” atribuídos às vacinas e 80 falsos “antídotos” vendidos como cura — de argilas detox a dióxido de cloro.
A equipe classificou as alegações, mediu a frequência de cada boato e cruzou as menções com estudos científicos e dados oficiais de farmacovigilância.
“O medo é o combustível da desinformação — e também o produto que ela vende”, resume Ergon Cugler, coordenador do estudo, membro do Conselho da República e autor principal da pesquisa.
“Essas comunidades constroem narrativas de pânico e, em seguida, oferecem um ‘remédio’ ou ‘cura’. É uma indústria do medo.”
No Dia Nacional da Vacinação, o g1 traz quatro dos principais nomes da imunização no Brasil — Luana Araújo, Renato Kfouri, Isabella Ballalai e Mônica Levi — para explicar, com base científica, os dez boatos mais compartilhados em comunidades de desinformação no Telegram.
Os percentuais a seguir mostram a frequência com que cada mito apareceu nas publicações analisadas pelo DesinfoPop.
#1 – ‘Vacinas causam morte súbita’ (15,7%)
Reprodução/Telegram
O mito mais recorrente associa vacinas infantis a mortes súbitas, especialmente em bebês.
“Isso não acontece. É coincidência temporal, não causal”, afirma Mônica Levi, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
A desinformação nasce de um erro de interpretação estatística. A chamada síndrome da morte súbita infantil ocorre naturalmente em cerca de 1 a cada 1.000 nascidos vivos, principalmente entre 2 e 6 meses de idade — justamente o período com mais doses aplicadas.
Um estudo conduzido pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC), nos Estados Unidos, analisou quase 14 milhões de doses aplicadas e concluiu que não há aumento de mortalidade após a vacinação.
Pesquisas no Japão, Reino Unido e Austrália chegaram à mesma conclusão: não há relação causal entre imunização e óbitos infantis.
A crença persiste, diz Levi, porque “a coincidência de tempo é usada como prova de culpa — e o medo de perder um filho transforma uma coincidência em acusação”.
#2 – ‘Vacinas mudam o DNA humano’ (8,2%)
Reprodução/Telegram
A alegação de que as vacinas de RNA mensageiro “mudam o DNA” é uma das mais repetidas desde 2020.
As vacinas de RNA — como alguns tipos desenvolvidos contra a Covid-19 — funcionam como um manual de instruções temporário: ensinam o corpo a produzir uma proteína do vírus, ativando o sistema imunológico.
Estudos publicados na Nature Reviews Drug Discovery e no New England Journal of Medicine demonstram que o RNA não se integra ao DNA nem tem mecanismos biológicos para fazê-lo.
“Não existe caminho molecular que permita essa integração. O RNA mensageiro é uma molécula transitória que não ‘entra’ no núcleo da célula. O material genético da vacina desaparece em poucas horas”, reforça a infectologista Luana Araújo.
#3 – ‘Vacinas causam AIDS’ (4,3%)
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A falsa associação entre vacinas e AIDS é uma das mais duradouras e perigosas. Nos grupos de desinformação, o termo “AIDS” aparece como sinônimo de imunossupressão — a ideia de que o sistema imune “entra em colapso” após a vacinação.
“É uma manipulação sem base científica. O medo foi explorado com base em um termo que remete a uma epidemia histórica. Usaram a palavra AIDS porque ela assusta — e porque vende medo”, afirma Luana Araújo.
A AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é o estágio avançado da infecção pelo HIV, quando o vírus destrói linfócitos CD4 — células que coordenam a resposta imunológica.
Vacinas, por outro lado, ativam o sistema imune: estimulam a produção dessas mesmas células e de anticorpos protetores.
O boato de “imunossupressão pós-vacina” surge de uma interpretação distorcida de estudos antigos que observaram variações transitórias em células de defesa logo após a vacinação — um efeito normal da resposta imune. Nenhum desses trabalhos fala em AIDS ou perda duradoura de imunidade.
Desde 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) publicaram notas reiterando que não há qualquer relação entre imunização e enfraquecimento do sistema imune.
Pelo contrário: análises de coorte mostram que pessoas vacinadas têm respostas imunes mais equilibradas e menor risco de infecções graves.
“A única coisa que causa AIDS é o vírus HIV. Nada mais leva a essa síndrome”, ressalta Luana.
#4 – 'Vacinas envenenam o corpo' (4,1%)
Reprodução/Telegram
O mito do “envenenamento” circula desde os anos 1990, quando o conservante timerosal e o adjuvante alumínio passaram a ser alvo de campanhas falsas.
“As vacinas passam por testes toxicológicos extensos. O alumínio e o timerosal são usados em doses ínfimas e seguras”, afirma Isabella Ballalai, da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
O timerosal foi investigado por 20 anos. Revisões de larga escala — como a publicada no periódico médico JAMA em 2003 e o relatório da WHO Global Advisory Committee on Vaccine Safety, de 2012 — mostram ausência de qualquer risco neurotóxico ou associação com autismo.
O alumínio, presente em vacinas há mais de 70 anos, atua apenas para potencializar a resposta imune e está presente em quantidades milhares de vezes menores que as encontradas na água e nos alimentos.
“As pessoas imaginam que qualquer traço químico é veneno, mas esquecem que tudo, até a água, depende da dose para ser seguro”, comenta Ballalai.
#5 – ‘Vacinas causam câncer’ (2,9%)
Reprodução/Telegram
Em grupos antivacina, a expressão “câncer turbo” é usada para afirmar que imunizantes reativam tumores adormecidos.
Não é verdade. As vacinas atuam no sistema imunológico, não no DNA das células. Elas não alteram material genético, não promovem mutações e tampouco acordam células cancerígenas.
“Não há nenhuma evidência científica de que vacinas possam causar câncer. Ao contrário: temos vacinas que previnem tumores, como a do HPV”, explica Isabella Ballalai.
Estudos de larga escala comprovam o oposto da narrativa conspiratória: segundo a Lancet Infectious Diseases (2019), a vacinação contra o HPV reduz em até 90% os casos de câncer de colo do útero.
Já a vacina contra a hepatite B diminui significativamente o risco de carcinoma hepatocelular, o tipo mais comum de câncer de fígado — evidência publicada no JAMA em 2019.
“Vacinas estimulam defesa, não proliferação celular”, reforça Isabella.
Nos bancos internacionais de farmacovigilância — como o Vaccine Adverse Event Reporting System (VAERS), nos EUA, e o EudraVigilance, na Europa — não há registro de aumento de tumores entre pessoas vacinadas.
#6 – ‘Vacinas causam cegueira’ (2,0%)
Reprodução/Telegram
A teoria da “cegueira pós-vacina” voltou a circular em 2021, impulsionada por postagens no Telegram que exibiam imagens de olhos com coágulos e alegavam perda visual após a imunização.
“Esses casos vêm de coincidências temporais ou relatos descontextualizados. Não há aumento de cegueira pós-vacina”, explica Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
As principais agências de saúde do mundo — OMS, CDC e autoridades do Reino Unido — monitoram continuamente eventos adversos e são categóricas: as complicações oculares graves são raríssimas e sem relação causal com vacinas.
Um estudo publicado no British Journal of Ophthalmology (2022), que analisou mais de 40 milhões de doses aplicadas, não encontrou aumento de casos de trombose ocular em vacinados.
“O risco de complicações vasculares é muito maior em quem adoece de Covid-19 do que em quem se vacina”, reforça Kfouri.
Ou seja: a infecção pelo vírus ameaça a visão de forma comprovada; a vacina, não.
#7 – 'Vacinas formam microcoágulos invisíveis' (1,9%)
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O mito dos “microcoágulos invisíveis” nasceu de vídeos que circulam até hoje, mostrando amostras de sangue supostamente espessadas após a vacinação. Nenhum desses conteúdos tem base laboratorial.
"Eventos trombóticos são extremamente raros e relacionados a mecanismos imunes específicos", explica Renato Kfouri.
A teoria distorce um fenômeno real, observado em 2021: a Síndrome de Trombose com Trombocitopenia (STT), reação imunológica rara associada a alguns imunizantes de vetor viral.
Segundo a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a incidência é de 1 caso a cada 100 mil doses, e a maioria dos pacientes evolui bem após o tratamento.
“Essas reações foram reconhecidas, investigadas e tratadas. Isso mostra o sistema de segurança funcionando, não o oposto”, diz Kfouri.
#8 – 'Vacinas causam miocardite' (1,8%)
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Poucas expressões despertam tanto medo quanto “inflamação no coração”. E foi justamente esse temor que as redes antivacina exploraram ao associar vacinas à miocardite — inflamação do músculo cardíaco.
“A miocardite pós-vacina é rara e, quando aparece, costuma ser leve e de fácil reversão. Já a provocada por infecções é muito mais frequente e grave”, explica Renato Kfouri,
Estudos conduzidos pelo CDC e publicados no JAMA em 2022 mostram que a condição ocorre em cerca de 1 caso a cada 100 mil doses, principalmente em homens jovens, e costuma ter evolução benigna e completa.
Já entre pessoas infectadas pelo coronavírus, o risco de desenvolver miocardite é oito vezes maior e os quadros são mais graves, com maior chance de hospitalização.
A diferença é tão significativa que, segundo o próprio CDC, os benefícios da imunização superam amplamente qualquer risco potencial de miocardite.
“É preciso comparar o risco da doença com o da vacina — e o da doença é infinitamente maior”, reforça Kfouri.
#9 – 'Vacinas contêm vermes ou parasitas vivos' (1,3%)
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Em meio às teorias mais extravagantes, uma das que mais circulam no Telegram afirma que vacinas carregam parasitas vivos ou vermes microscópicos capazes de se mover no corpo.
O mito costuma vir acompanhado de vídeos com supostos micro-organismos se mexendo sob microscópios caseiros — gravações que, segundo os especialistas, mostram apenas impurezas ópticas, bolhas de ar ou fibras têxteis.
“Vacinas são preparações estéreis. Elas passam por testes microbiológicos rigorosos em cada lote produzido. Qualquer presença de material vivo inviabilizaria a aprovação”, explica Mônica Levi.
O processo de controle é detalhado: todas as vacinas registradas no Brasil passam por análises de esterilidade conduzidas pela Anvisa e por laboratórios oficiais de referência, seguindo os padrões da Farmacopeia Brasileira e da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Esses testes buscam bactérias, fungos e parasitas antes que qualquer dose chegue ao público.
Além disso, nenhuma plataforma vacinal — de RNA, vetor viral ou proteína recombinante — contém organismos vivos capazes de sobreviver no corpo humano.
“É uma narrativa visual poderosa, mas sem qualquer fundamento biológico”, observa Levi.
#10 – ‘Vacinas provocam aborto espontâneo’ (1,3%)
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Entre as mulheres, um dos boatos mais sensíveis é o que liga vacinas ao risco de aborto. A desinformação circula em grupos de gestantes desde 2021, mesmo diante de evidências consistentes sobre a segurança da imunização.
“As vacinas aprovadas para gestantes passam por um processo científico rigoroso — começam em modelos animais e só seguem adiante quando se comprova que não há desfechos adversos, como parto prematuro, malformações ou abortos”, explica Kfouri.
Além disso, os dados de farmacovigilância não mostram aumento de abortos em gestantes vacinadas.
Um estudo publicado no New England Journal of Medicine em 2021, que acompanhou mais de 35 mil gestantes vacinadas, não identificou aumento de abortos, partos prematuros nem malformações. O mesmo foi observado em revisões conduzidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Anvisa.
“A vacina protege a mãe e também o bebê, porque os anticorpos atravessam a placenta e garantem proteção nas primeiras semanas de vida”, explica Kfouri.
Segundo o Ministério da Saúde, a imunização de gestantes é uma das estratégias mais eficazes para reduzir internações e mortes por infecções respiratórias no Brasil.
Por que esses boatos ainda prosperam
A resistência às vacinas combina emoção, desinformação e interesse econômico. As mensagens antivacina exploram temas universais e criam gatilhos emocionais difíceis de desmontar.
“Essas mensagens exploram medos básicos — morte, fertilidade, controle. São gatilhos emocionais mais fortes que qualquer dado científico”, diz Luana Araújo.
Mônica Levi aponta o outro lado do problema: “A hesitação vacinal não é só ignorância. É falta de educação científica. Quando a ciência não chega, a fantasia ocupa o espaço.”
Há ainda um componente comercial. “Muitos desses grupos vendem suplementos, terapias ou cursos milagrosos. A desinformação virou negócio”, diz Renato Kfouri.
O relatório da FGV confirma essa engrenagem: a cada “dano” inventado, surge um “antídoto” pago — o funil do medo.
“O medo é o que se vende — e o conhecimento é o que se combate”, conclui Ergon Cugler.
O estudo DesinfoPop em números
1,47 milhão de mensagens analisadas (2019–2025)
1.785 comunidades conspiratórias monitoradas
5,8 milhões de usuários ativos
175 alegações falsas de “danos” mapeadas
80 falsos “antídotos” identificados
Brasil responde por 40% da desinformação antivacina da América Latina
Fontes:
Luana Araújo — médica infectologista, mestre em Saúde Pública pela Johns Hopkins University (EUA). Atua em projetos de educação em saúde e combate à desinformação científica. Foi consultora do Ministério da Saúde e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Renato Kfouri — pediatra, infectologista e presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). É vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e membro do Comitê Técnico Assessor em Imunizações do Ministério da Saúde.
Isabella Ballalai — médica, especialista em Saúde Pública, ex-presidente e atual vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Atua há mais de 25 anos em programas de vacinação e comunicação científica.
Mônica Levi — médica infectologista, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). É pesquisadora e consultora em imunização, com atuação em vigilância epidemiológica, farmacovigilância e imunização de grupos especiais.
Ergon Cugler — cientista de dados e membro do Laboratório DesinfoPop da Fundação Getulio Vargas (FGV). É pesquisador em políticas públicas digitais, desinformação e análise de redes sociais. Coordenador do estudo “Anti-vaccine Disinformation in Latin America and the Caribbean”, referência na área de monitoramento de desinformação sobre saúde.
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