'Não controlava meu corpo': sem diagnóstico por 4 anos, mulher tentou suicídio duas vezes até descobrir distonia
27/08/2025
(Foto: Reprodução) Nilde Soares
Arquivo Pessoal
Nilde Soares tinha 30, um emprego em uma multinacional e a vida aparentemente sob controle quando percebeu os primeiros sinais de havia algo errado com seu corpo: o olho piscava sozinho, a boca contraía sem que ela conseguisse evitar.
No começo, eram apenas tiques discretos. Com o tempo, os movimentos se tornaram mais intensos — o pescoço parecia “quicar” como uma mola, impedindo-a até de sustentar o olhar.
“Estava em reunião com um cliente quando ele perguntou se eu estava bem. Fui ao banheiro e, no espelho, vi que meu rosto fazia caretas involuntárias. Quase tive um infarto. Fui direto para o pronto-socorro, mas disseram que era crise nervosa”, relembra.
A partir daí, começou uma peregrinação. Psiquiatras, psicólogos, medicamentos para depressão, calmantes, sessões de análise — nada funcionava. Pelo contrário: a dor aumentava, o corpo ficava cada vez mais rígido, e as explicações médicas reduziam seu sofrimento a “questões emocionais”.
“Fui atendida em grandes hospitais de São Paulo, mas diziam que meu problema era psicológico. Chegaram a sugerir internação psiquiátrica. Foram quatro anos e meio de tratamentos errados, mais de 20 remédios por dia e nenhuma resposta”, conta.
A frustração e a dor crônica a levaram ao limite. Nesse período, Nilde tentou duas vezes tirar a própria vida. “Quem sente dor constante já tem a arma em casa. Você não precisa de mais nada”, desabafa.
O diagnóstico que mudou tudo
Só no sétimo neurologista, um especialista em distúrbios do movimento, veio a resposta: distonia cervical idiopática, um tipo de distúrbio do movimento que afeta pescoço, ombros e rosto. A confirmação veio com um exame de eletroneuromiografia.
“Foi um alívio enorme deixar de me sentir um E.T. Finalmente a doença tinha nome. Mas também foi doloroso, porque percebi que havia perdido anos de vida tomando medicações erradas”, diz Nilde.
O primeiro tratamento correto trouxe esperança: aplicações de toxina botulínica (botox terapêutico) para bloquear as contrações musculares. “Na primeira aplicação, saí da clínica sem dor. Naquele dia, fui direto a uma churrascaria porque fazia anos que não conseguia mastigar e engolir comida sólida sem ajuda”, lembra.
Com a evolução da doença, Nilde passou a usar a estimulação cerebral profunda (DBS, na sigla em inglês) — um dispositivo implantado no cérebro que envia impulsos elétricos para reduzir os espasmos. “É como ter um marca-passo no cérebro. Carrego o aparelho todas as semanas. Se a bateria falha, os sintomas voltam imediatamente”, explica.
Ao longo dos anos sem diagnóstico, Nilde parou de andar
Arquivo Pessoal
O que é a distonia?
A distonia é um distúrbio neurológico caracterizado por contrações musculares involuntárias, que provocam torções, movimentos repetitivos ou posturas anormais. Essas alterações acontecem devido a falhas no controle motor do cérebro.
Segundo Sara Casagrande, neurologista especialista em Distúrbios do Movimento, a condição pode ter diferentes origens:
Genética, quando mutações afetam regiões do cérebro ligadas ao movimento.
Adquirida, após traumas, infecções, uso de certos medicamentos (como antipsicóticos ou remédios para enjoo), ou sequelas de AVC.
Idiopática, quando não se identifica uma causa específica.
Neurologista do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), João Carlos Papaterra explica que a doença pode se manifestar em qualquer parte do corpo. Nos adultos, é mais comum afetar pescoço, músculos da face e membros superiores. Alguns exemplos:
Distonia cervical: causa torcicolo e desvio involuntário da cabeça.
Blefaroespasmo: provoca piscamento excessivo e incontrolável.
Distonia oromandibular: envolve contrações na mandíbula, dificultando mastigar e falar.
Câimbra do escrivão: afeta mãos de quem escreve ou realiza tarefas específicas.
Quais os sintomas e como é feito o diagnóstico?
Os sintomas podem começar de forma sutil, aparecendo apenas durante movimentos específicos, como caminhar ou escrever. Com o tempo, as contrações se tornam mais frequentes e podem ocorrer até em repouso.
Além dos movimentos involuntários, os pacientes enfrentam dor crônica intensa, fadiga muscular e, muitas vezes, problemas psicológicos associados — como ansiedade e depressão. Em alguns casos, há também sintomas não motores, como alterações sensoriais e de humor.
O diagnóstico deve ser feito por um neurologista especializado em distúrbios do movimento. Exames de imagem, como a ressonância, servem apenas para descartar outras doenças. O teste mais específico é a eletroneuromiografia, que mede a atividade elétrica dos músculos e pode confirmar a presença da distonia.
Neurologista explica o que pode desencadear e como tratar a distonia
Existe cura? Quais os tratamentos disponíveis?
Não há cura para a maioria dos casos de distonia, mas há tratamentos capazes de controlar os sintomas e melhorar a qualidade de vida. Segundo os médicos ouvidos pela reportagem, as principais opções são:
Toxina botulínica (botox terapêutico): aplicada nos músculos afetados, reduz significativamente as contrações e a dor. É considerada o tratamento de primeira linha para distonias focais.
Medicamentos orais: usados em alguns casos, com resultados variáveis, especialmente em distonias generalizadas.
Estimulação cerebral profunda (DBS): indicada para quadros graves e refratários, consiste no implante de eletrodos no cérebro para modular os impulsos elétricos que causam os espasmos.
Acompanhamento multidisciplinar: fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e apoio psicológico são essenciais para garantir funcionalidade e qualidade de vida.
Segundo Sara Casagrande, o segredo está na combinação. “O tratamento envolve não só medicamentos e aplicações, mas também fisioterapia, psicologia e, quando necessário, neuromodulação. Só assim é possível melhorar a funcionalidade e devolver autonomia ao paciente”.
‘Riam de mim, tiravam fotos’
Além da dificuldade de acesso, os pacientes enfrentam preconceito e invisibilidade social.
“Muitas vezes, as pessoas riam de mim na rua, tiravam fotos escondidas dos meus movimentos. Dói muito quando até a família não entende”, relembra Nilde.
A experiência pessoal virou ativismo. Após sobreviver às tentativas de suicídio, ela fundou o Instituto Distonia Saúde, que conecta pacientes a médicos especializados, fisioterapeutas, psicólogos e advogados. “A maior dificuldade é encontrar profissionais preparados. Nosso objetivo é ser ponte entre quem sofre e quem pode ajudar”, explica.
Durante a pandemia de coronavírus, Nilde acompanhou de perto a dor de outros pacientes. Segundo ela, 27 conhecidos com distonia se suicidaram nesse período. “Nós não existimos para o poder público. Não temos leis que nos reconheçam como pessoas com deficiência. A dor de um pescoço que não para de se contrair já levou muita gente ao limite”, diz.
O futuro possível
Para os especialistas, o avanço da medicina de precisão e de terapias genéticas pode, no futuro, oferecer alternativas mais eficazes. Mas até lá, os pacientes seguem dependendo da combinação entre botox terapêutico, fisioterapia, acompanhamento psicológico e, nos casos mais graves, cirurgias como o DBS.
Nilde, hoje com 54 anos, segue convivendo com a condição.
“Eu mudei minha rota. Se não posso curar a doença, vou lutar para que ninguém precise passar metade do que eu passei. Ter um diagnóstico certo não deveria ser um privilégio, mas um direito.”